Estavam em Remelhe, pela casa que D. António Barroso mandou construir, nos princípios do séc. XX. Propriedade, agora, do seu sobrinho-neto, António José Barroso, é ali que ainda se guardam muitas memórias da vida do seu tio-avô, missionário em Angola, bispo em Moçambique, em Meliapor, na Índia, e na diocese do Porto. Depositadas em gavetas pelo sótão, cerca de um milhar de cartas foram, entretanto,
entregues a Margarida Pogarell, uma descendente de familiares de Remelhe, residente na Alemanha, onde é professora e autora de contos. Admiradora da personalidade do seu “conterrâneo”, aceitou generosamente a incumbência de ordenar, catalogar e digitalizar este espólio, naturalmente condenado ao lixo sem história… São ainda breves os contactos com estes dados do quotidiano de seis décadas de vida do bispo missionário. Este Boletim poderá ser guarida de belos e longos passos dos pés deste evangelizador, por meio dos séculos XIX e XX. Margarida Pogarell sintetiza aqui as primeiras emoções que a surpreenderam nas cartas que já leu, em tempos de pandemia.
1883, 1891, 1911…, as datas surgem, quase irreais, por entre as inúmeras
cartas, agrupadas em pequenos maços. Legíveis ainda, na sua maioria, devido à fantástica qualidade do papel de outros tempos. A sua sobrevivência ao longo de quase 150 anos, nalguns casos, raia as fímbrias do milagre. Missivas de carácter privado ou profissional, algumas mesmo “top secret”, onde a letra corrida de D. António surge resoluta na forma como as marca: “Reservado” ou “Muito Reservado”.
O traço sui generis da sua letra, é por si só, um desafio, do qual tinha plena consciência. Chegou a ponto de aconselhar a própria família a encontrar alguém que fosse capaz decifrar os seus ilegíveis hieróglifos. D. António escrevia sem aso para floreados, como se corresse atrás do tempo. Carece de engenho e cuidado o destrinçar desta sua caligrafia alinhada. As palavras correm, fluídas, sem grandes rasuras, como que vincando com aquele traço certeiro, a determinação do seu pensamento de homem de muitas frentes e de uma só linha. Metódico, registava, em cima, no sobrescrito, a data de entrada e, em baixo, a da resposta. As mais importantes, contêm, no seu interior, cuidadosamente dobrada a cópia da sua resposta a entidades, como o Núncio Apostólico em Lisboa ou ao seu colega de seminário, e mais tarde bispo de Damão, Reed da Silva, que posteriormente substituiria, em meio de grande polémica.
Carregada de ternura, chega-lhe a carta de seu irmão falando-lhe da doença da mãe e do verão frio, chuvoso e “sempre com névoas” a estragar a cultura do milho “um tanto enfezado” e do vinho que “tem sofrido tanto”. Como D. António, as suas missivas sobreviveram ao pulsar dos verões, às humidades dos rigorosos invernos nortenhos e às intempéries humanas. Depois de mais de um século, é emocionante, para mim, aflorar estes pedaços de vida que as suas mãos tocaram e trazer, à luz do dia, o quotidiano que, apenas ele e os seus intervenientes, conheciam.
Este é o outro lado da história do missionário Barroso, revelado a partir de fontes insuspeitas, que irão levantar o interesse de quem quer conhecer, ainda mais, quem alto levantou a Missão, e em que sempre acreditou. Foi deste modo que o venerável D. António Barroso deixou nas páginas da missionação portuguesa o sentir do homem, menino folgazão na infância e adolescência e missiólogo de ciência pastoral, atravessada por duas experiências de vida.
Manuel Vilas Boas