Por Padre Manuel Mendes,  Obra do Padre Américo

Tenaz. Rebelde. Uma só cara. Não torceu nem quebrou. Só ele! (Testemunho do Padre Américo)

Quando se procuram informações e documentos para ver ou tecer alguns fios seguros sobre pessoas e acontecimentos históricos, por vezes encontram-se algumas pontas que permitem olhar com muita estima para um belo pano de linho, de flores azuis! Acenamos adiante algumas ligações a Américo Monteiro de Aguiar, que demonstram tal asserção. Sobre a vida heróica do Venerável D. António Barroso [5-XI-1854; 31-VIII- 1918], também vamos tirando grande proveito do conhecimento do seu itinerário biográfico; e, no nosso tempo marcante de Seminário do Porto, a este santo Bispo dedicámos breves notas na revista Atrium [1995], quando o seu Processo entrava em Roma. É inquestionável que se trata de uma figura eclesial de relevo e emblemática na Igreja Católica em Portugal, como Missionário em África e Bispo do Porto [1899-1918].

Não sendo nosso propósito, nestas linhas, fazer sequer um esboço biográfico, é justíssimo assinalar a inauguração e bênção pelo Bispo do Porto, D. Manuel, de uma estátua deste grande Bispo, tendo uma cruz e uma enxada nas mãos, e de um elenco gravado de 320 missionários – como António José de Sousa Barroso, formados no Colégio das Missões Ultramarinas e que foram para as Missões do Padroado Português – no jardim de entrada do Seminário das Missões de Cernache do Bonjardim, concelho da Sertã, no dia 20 de Outubro, Domingo, na qual participámos com um rapazito, Marcelino. Depois da Consagração ao Sagrado Coração de Jesus, em Fátima, pelos Bispos portugueses, no Dia Mundial das Missões, seguiu-se uma significativa homenagem à missionação portuguesa, com a presença da maioria do Episcopado português, missionários da Boa Nova, Postulador desta Causa [e também de Padre Américo] – Padre João Pedro Bizarro, várias autoridades e muitos amigos e devotos. Com alguns raios de sol, os vários momentos dessa tarde foram apresentados pelo Vice-Postulador da Causa de Beatificação, Amadeu Araújo, e foi escutada uma saudação de acolhimento pelo Superior Geral da Sociedade Missionária da Boa Nova, Padre Adelino Ascenso. Eis que numa intervenção sobre a missionação portuguesa entre 1856 e 1912, nomeadamente o papel importante de D. António Barroso, foi referido por Guilherme de Oliveira Martins um excerto de uma página de antologia do Padre Américo sobre D. António Barroso, a que se seguiu forte ovação!

Noutra altura, foi uma agradável surpresa quando demos a conhecer esta informação a José Ferreira Gomes [† 21-XI-2013], grande dinamizador do movimento pró-Beatificação de D. António Barroso, e que a citou na sua Súmula Biográfica. Nesta ocasião, justifica-se transcrever este testemunho significativo, intitulado Um acontecimento [vd. O Gaiato, 20-XI- 1954]. Então, eis: Acaba de se realizar na cidade de Barcelos uma festa de homenagem ao Bispo D. António Barroso, por ser ali o seu berço [Remelhe] e fazer um século que ele nasceu. Gosta-se de ouvir notícias deste género. Elas são uma afirmação dos valores espirituais. Ainda que não fossem outras, só por esta razão vale a pena trabalhar com amor pelo Bem dos homens: labor vester non est inanis [in Domino] [o vosso trabalho não é inútil no Senhor] (1 Cor 15, 58). Daí estas reuniões solenes, aonde se desenterram homens e se prega ao mundo a Imortalidade. Gosta-se destas notícias. O senhor D. António, Missionário do Congo, foi o homem do seu tempo. Encheu a história. Coisas pequeninas tornaram-no um gigante; de uma vez, também em Barcelos, a Câmara de então quis prestar- -lhe as honras de haver sido transferido da Índia e feito Bispo do Porto, tendo-o detido numa sessão magna, antes de ir a Remelhe, ver a Mãe [Eufrásia Rosa]. Começam os oradores. Nisto o festejado olha. Pareceu-lhe ver ao fundo alguém conhecido… Torna a olhar. Não há dúvida. Era ela! Levanta-se. Abre caminho. Há o encontro. Toma-a consigo. Regressa ao estrado. Fá-la sentar na sua própria cadeira. Acabou a sessão. Estava tudo dito!

Não sei que algum bispo da história de Moçambique tenha ido ao Zumbo antes dele. Era uma jornada de quinze dias por carreiros de preto. Ele foi. Ao passar por Tete, já de noite, bate à porta do Anacleto Martins, velho colono, que passou dos oitenta; a família estava à mesa quando o moleque anuncia dois padiri. Anacleto manda recado: entrem que ainda há duas argolas. O Prelado tomou uma das argolas e jantou familiarmente. Fumava charuto. Uma vez que vim a Portugal, fui a Remelhe levar ao Desterrado a prenda amiga de um missionário: um cachimbo queimado. Fumava. Parecia do mundo e não; era um homem de Deus!

Só ele mereceu ocupar e preocupar os homens do Terreiro do Paço, naquele tempo. Duro. Tenaz. Rebelde. Uma só cara. Não torceu nem quebrou. Só ele!

Porém, a grande loucura está no amor aos pobres. Desmandos. Imprudências. Coisas mal feitas – tudo. Um cordão que a Mãe lhe dera, gastava-se aos bocadinhos, quando não havia dinheiro. Os seus familiares sabiam muito, sim, mas não tudo. Os grandes escondem-se.

E é justamente agora que temos o verdadeiro acontecimento. Por tudo, mas muito principalmente por causa desta santa devoção, é que a diocese do Porto, Bispo à frente, resolveu consagrar à sua memória o número das 28 casas de Miragaia para que de futuro se chamem e sejam efectivamente Bairro D. António Barroso. Honra à diocese. Foi nela que recebeu os golpes do seu fecundo martírio.

A comemoração de Barcelos foi agradável. A do Porto, útil. Juntemos as duas e temos feito uma grande memória a um grande português.

Sobre Américo de Aguiar e D. António Barroso, bem como a possibilidade de ser admitido no Colégio de Cernache do Bonjardim, na sua adolescência, deixamos algumas informações complementares. Assim, Américo Monteiro de Aguiar esteve em Moçambique de 24 de Dezembro de 1906 a 26 de Janeiro de 1923; e, entre várias viagens de merecidas férias a Portugal, de visita à família, um encontro [citado] em Remelhe poderá ter acontecido entre Maio e Novembro de 1912, o que coincide com um desterro de D. António Barroso, entre 9 de Março de 1911 e 3 de Abril de 1914. Chamado a Lisboa por Afonso Costa, do Governo Provisório, D. António Barroso foi destituído das suas funções de governador da diocese do Porto, pois não impediu a leitura, nas Paróquias, da Pastoral Colectiva do Episcopado Português ao Clero e fiéis de Portugal. Neste período, o Cónego Dr. Manuel Luís Coelho da Silva foi Governador do Bispado do Porto durante 10 meses; porém, por decreto governamental, de 28 de Dezembro de 1911, o Deão Coelho da Silva foi proibido de residir no distrito do Porto, durante dois anos.

Com base num Certificado de Crisma de Américo Monteiro de Aguiar [passado em 1-X-1926], arquivado na Cúria Diocesana de Coimbra, na sua permanência no Porto, como marçano numa loja de ferragens, desde Outubro de 1902,terá sido crismado pelo Bispo do Porto, na Sé Catedral. Na verdade, em 2 de Agosto de 1899, D. António Barroso entrou solenemente, na Diocese do Porto, no meio de imensa multidão. Foi sagrado Bispo, na Sé Patriarcal de Lisboa, em 5 de Julho de 1891, pelo santo Cardeal D. José Sebastião Neto – ilustre Prelado que veio a falecer em 7 de Dezembro de 1920,em pobreza franciscana no Convento de Vilariño de la Ramallosa [onde Américo de Aguiar foi recebido, em Outubro de 1923].

Ainda com 14 anos, em Agosto de 1902, Ramiro Monteiro de Aguiar, seu pai, em carta ao filho Padre José, missionário em Cochim, escreveu que não achava o Américo com feitio para padre, contrapondo assim a sua vontade, atendida pela sua mãe Teresa Ferreira Rodrigues, que tinha escrito para o mesmo filho, em Junho desse ano, dizendo: peço-te que me dês andamento a este embaraço em que eu me vejo com P5 Boletim do Venerável D. António Barroso este rapaz, ele tem muita vontade de ser padre, vamos a ver se agora o podemos apanhar. Por essa altura, apesar de tudo, seu pai sugeriu que entrasse no Colégio das Missões de Cernache do Bonjardim, o que não veio a acontecer. Nos desígnios de Deus, não seria a hora de deixar as redes… José de Aguiar, o seu irmão mais velho, foi para a diocese de Cochim, levado pela mão de D. João Gomes Ferreira [Aguiar de Sousa (Paredes), 9-VI-1851; Pangim, 4-V-1897], que tinha sido aluno em Cernache do Bonjardim e foi sagrado Bispo em 21 de Agosto de 1887. Era amigo de seu pai, Ramiro de Aguiar, e passou pela Casa do Bairro, em Galegos (Penafiel), no Verão de 1891, segundo António Moreira da Rocha.

Em jeito de curiosidade bibliográfica, encontrámos um espécime interessante, em que se interligam várias figuras eclesiais, pois está assinado por D. António, Bispo do Porto, mais precisamente as Obras Pastorais do Em.mo Cardeal D. Américo Bispo do Porto [2 vols., Typ. a vapor da Real Officina de S. José, 1901-1902], publicadas depois da sua morte [em 21 de Janeiro de 1899]. O exemplar à mão foi oferta do 2.º prémio em mérito moral conferido a Manuel Fernandes do Santos. Este seminarista, segundo dados do Arquivo da Diocese do Porto, nasceu em Romariz, em 7-III-1887, foi ordenado Presbítero em 1-VIII-1909 e faleceu em 15-XI-1963. Sendo pároco da sua terra, escreveu Breves Apontamentos sobre Romariz [Porto, 1940]. Dessa localidade também era natural o sábio Padre Domingos A. Moreira [1933-2011], figura relevante da linguística portuguesa e Pároco de Pigeiros, cujo espólio bibliográfico e documental doou ao município da Feira.

Encontrámo-lo várias vezes na Biblioteca do Seminário Maior do Porto, nas suas aturadas e seguras investigações históricas. Se os santos se fazem ao colo das mães, conforme é manifestado, D. António Barroso é seguramente um dos grandes da Igreja em Portugal, como modelo de missionário e Bispo bondoso e firme, Na sua Pastoral de saudação [27-VII-1899], escreveu com afecto: Podeis crer, filhos caríssimos, que o Paço do vosso Bispo há-de ser o refúgio dos vossos males. E, ainda: Dai aos pobres, que Deus vos pagará cento por um; ide ao tugúrio da miséria salvar a pobreza e ao antro do vício remir desgraçados. No seu Testamento, em 1917, deixou assim escrito: nasci pobre, rico não vivi e pobre quero morrer.

Faleceu com 63 anos, depois de uma corajosa e fecunda acção apostólica, em solos africano [1880-1895], indiano [1897-1899] e lusitano [1899- 1918] – missionário de três continentes! Américo – cujo nome deve ao Cardeal D. Américo, Bispo do Porto [1871-1899], predecessor de D. António Barroso – partiu para o Céu também cedo, só com mais os dedos da mão [68 anos], com a qual escreveu aquele panegírico, e depois de testemunhar a pobreza de Jesus na sua vida heróica, como diz S. Paulo: Conheceis bem a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, Se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza [2 Cor 8, 9].

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