Por Guilherme d’Oliveira Martins

A história do Real Colégio das Missões Ultramarinas leva-nos a compreender um longo percurso da missionação católica e do Padroado Português, iniciado no século XV, a partir da primeira diocese global no Funchal, que durou até ao século XX, em virtude da evolução histórica, do fim da jurisdição eclesiástica de Macau e sobretudo do Concílio Vaticano II. Com o Seminário de Cernache, devem lembrar-se os Seminários de Rachol (Goa) e de S. José (Macau). A instituição de Cernache do Bonjardim foi criada em 1791 na regência do Príncipe D. João, que viria a ser D. João VI, tendo tido como colégio uma vida difícil em razão da implantação do regime liberal e da República. Pode dizer-se que a figura de D. António Barroso marca decisivamente a abertura de horizontes novos no campo da missionação. Natural de Remelhe (Barcelos), onde nasceu em 1854, foi bispo prelado de Moçambique, bispo de S. Tomé de Meliapor (na costa Este da Índia, atual cidade de Chennai) – onde está viva a memória das primeiras comunidades cristãs da Índia, muito antes da chegada dos portugueses, sob a invocação do apóstolo S. Tomé. António Barroso vai estudar para o Seminário de Braga e dali é transferido em 1873 para o Real Colégio das Missões Ultramarinas. Foi missionário em Angola e Moçambique – sendo célebre o seu relatório sobre o Padroado de Portugal em África. É relevante a presença em Angola e no Congo, entre 1880 e 1888, e depois, como se disse, enquanto Prelado de Moçambique (1892-1895) e como ativo evangelizador em S. Tomé de Meliapor. Ainda se lhe deve a renovação do Colégio da Missões, sendo precursor da Sociedade Portuguesa das Missões Católicas Ultramarinas, atualmente designada como Sociedade Missionária da Boa Nova, hoje dirigida pelo Padre Adelino Ascenso.

O saudoso Bispo do Porto D. António Ferreira Gomes não hesitou em designar António Barroso como “modelo de missionários”. Foi assim “continuador dos que acenderam no Oriente a luz do Evangelho e lançaram as sementes de uma civilização universalista”. E não esquecemos o que disse o Padre Américo: “Duro, tenaz, rebelde. Uma só cara. Não torceu nem quebrou. Só ele. Porém, a sua grande loucura está no amor dos pobres”. E é significativo o que disse Raul Brandão: “o Bispo é uma grande figura de bondade. Dá tudo o que tem”. Desde 1899, é assim Bispo do Porto e logo se afirma pelas suas excecionais qualidades humanas. Com a proclamação da República, os momentos iniciais são muito difíceis. Quando em 1911 é dada a conhecer a Pastoral do Episcopado Português em que se afirma o desacordo com alguma legislação da República anima-se a luta anticlerical. Os governadores civis proíbem a leitura desse documento. O próprio Bispo do Porto é detido e levado sob custódia a Lisboa, conhecendo o exílio em Remelhe, de onde regressa em 1914. A história tem algo que se lhe diga, uma vez que não se vê em D. António Barroso qualquer promoção da guerra, mas uma atitude crítica sem deixar a perspetiva positiva. A evolução da República vai determinar a afirmação clara do exemplo de D. António Barroso, para além da circunstância política. Depressa houve quem compreendesse, como Raul Brandão, que o prelado tinha por si a autoridade moral do espírito evangélico.

Pode dizer-se que o Bispo do Porto D. António Barroso antecipou o novo tempo. A assistência religiosa durante a Guerra de 1914-18, a abertura do Presidente António José de Almeida à pacificação, a beatificação de Nuno Álvares Pereira, a orientação de Bento XV no sentido do «ralliement» (ou seja, o fim da oposição dos católicos à forma republicana do governo), a autonomia da Igreja relativamente ao Estado – tudo contribuiu para a atenuação da questão religiosa. Com a lei da separação de 1911, previu-se a reforma do Colégio das Missões Ultramarinas. Em 1913 foram criadas as missões laicas em África e Timor. De 1920 a 1926 foram enviadas dez missões laicas para Angola e quatro para Moçambique, sem os resultados pretendidos. D. António Barroso, falecido em 1918, constitui um exemplo de defesa do espírito das missões na perspetiva que viria a ser consagrada pelo Papa Bento XV na Carta Apostólica «Maximum illud », cujo centenário passa este ano como recorda o Papa Francisco. «A vida divina não é um produto para vender – não fazemos proselitismo – mas uma riqueza para dar. E o exemplo de D. António Barroso permite compreender o sentido e a atualidade, ontem como hoje, da Carta de Bento XV: «Sê homem de Deus que anuncia Deus. Eu sou sempre uma missão, tu és sempre uma missão. Quem ama põe-se em movimento». E assim, o destino universal da salvação oferecido por Deus em Jesus Cristo levou o Papa Bento XV a exigir a superação de todo o fechamento nacionalista e etnocêntrico, de toda a mistura do anúncio do Evangelho com os interesses económicos e militares das potências coloniais. Assim o Papa lembrava que a universalidade divina da missão da Igreja exigia o abandono duma pertença exclusivista à própria pátria, à própria etnia… No caso de D. António Barroso, D. Carlos Azevedo afirma mesmo que “era uma personalidade que sabia distinguir o amor à pátria do nacionalismo. (…) Ele não era nacionalista, porque um cristão não pode ser nacionalista, mas tinha amor à pátria e ele demonstrou que podemos ter um grande amor à pátria, mas querer que a pátria esteja ao serviço da humanidade toda e não apenas de nós próprios como está muito na onda, por exemplo, dos nossos dias.” Assim, dá-nos o exemplo, no sentido de que ninguém fique fechado sobre si mesmo. Trata-se de conhecer a História e de fazer dela experiência de aperfeiçoamento – compreendendo que o diálogo é conhecimento mútuo, é razão e fé, é abertura de espírito à dignidade humana e ao amor.

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